27/09/2009

Trash cult

metro
 
O mundo artístico nova-iorquino classifica a arte que se faz nas estações do metrô, de trash cult, o que seria no vernáculo, algo como a cultura do lixo.
 
Não que eles queiram ser pejorativos, mas querendo significar uma arte que se pratica sem o glamour da Broadway.
 
Não vou com a cara da Broadway. Com raras exceções, e com a devida vênia a quem adora música baiana, aqueles espetáculos têm um quê de música baiana: toda semana lançam o que dizem ser um ritmo diferente mas que não deixa de ser a mesma coisa da semana passada com outro nome.
 
Gosto da arte do metrô: os nova-iorquinos são os melhores do mundo, até mesmo porque não se encontra em outros metrôs do planeta a diversidade de lá.
 
Cheguei cedo em Nova York e meu vôo para Miami seria somente à noite. Sem ter o que fazer resolvi ver a quantas ia a trash cult.
 
Resolvi pegar a linha de maior fluxo: aquela que os artistas preferem.
 
A primeira parada foi na Cortland, que leva ao World Trade Center. Subi um nível para mudar de linha e ouvi um bongô: avistei o tocador.
 
O cabelo mais parecia um monte de lã negra que escorria pelo ombro e os traços lhe gritavam a origem em alguma das etnias da África.
 
Não se conseguia lhe ver as mãos: elas faziam negros traços no ar e se materializavam ao pousar sobre o couro para tirar o tom e subirem novamente em busca da energia que as permitiria novo golpe.
 
O artista tocava de olhos fechados. A cabeça, jogada para trás, parecia querer equilibrar-se sobre um pescoço que insistia em derrubá-la. Os músculos da face assumiam o compasso e os tons arrancados do bongô.
 
Portava um rosto duro, quase selvagem. A camisa aberta lhe denunciava o corpo magro: poder-se-iam contar-lhe as costelas.
 
A pressão diária dos músculos da barriga para tocar o bongô na posição em que o fazia, sentado em um tamborete e com o instrumento preso pelas pernas, desenharam-lhe com perfeição os músculos do tórax. Quando a vista chegou ao chão vi grandes pés descalços e desproporcionais ao corpo.
 
Notei que um movimento feito pelos lábios do artista indicava algum som que o canto do bongô encobria. Aproximei-me. Ele fungava, e ao soltar o ar que o mantinha em movimento, gemia.
 
Ele aumentou o ritmo anunciando a apoteose. Os gemidos eram mais audíveis agora. A cabeça correu a procura do pescoço que agora caia para a frente. Os golpes no couro agora eram desesperados. Uma última e mais potente pancada no bongô chamou o silêncio na Cortland.
 
Ele abriu os olhos. Puxei palmas. Alguns me acompanharam. Outros rumaram ao trem ou à rua.
 
Alguns quartos de dólar caíram no boné espalmado do artista e ele agradecia com um thank you arfado.
 
Saquei cinco dólares e coloquei no boné. Seus olhos me fitaram e ele ensaiou um sorriso: ouvi um “thank you pal” com todas as letras ao estender-lhe a mão em cumprimento.
 
Entrei novamente no trem e vi um jornal abandonado. Olhei a página que se escancarava mais legível a minha vista: a manchete dizia, em tom jocoso, que o Presidente Clinton teria que baixar as calças no tribunal para mostrar uma marca íntima que uma fulana que o acusava de assédio sexual, jurava, de pé junto, existir.
 
Sorri ensimesmado, imaginando a cena que as quatro paredes da Suprema Corte proporcionariam: o Clinton com a calça à meio pau - sem trocadilhos maldosos, por favor - e o juiz cheio de dedos e óculos, procurando a tal pinta no pinto do presidente dos EUA.
 
Nada mais peculiar na história dos presidentes do império. Se o Clinton baixa as calças antes do final do mandato, poderá ser derrubado por uma pinta no pinto. Nixon, pelo menos, foi menos vulgar.
 
Saltei na Chambers Street, a parada que dá acesso a Tribeca, um bairro que quer ser um Greenwich Village uptown.
 
Rodei pela estação em busca de algum artista, mas os únicos que cruzei foram os que pintam o sete para sobreviver na Big Apple, correndo para lá e para cá nos corredores do subway.
 
Peguei o próximo trem e segui: Franklin Street, Canal Street, Houston Street, onde se desce para o Greenwich Village, mas eu não queria artistas de superfície.
 
Resolvi que desceria na Penn Station, que é a mais movimentada depois da Cortland e trocaria para outra linha.
 
Em um canto que parece fora feito para aquilo, ao pé das duas escadas rolantes que vomitam gente apressada rumo ao trem, uma moça sentada ao chão, afagava as cordas de um violão.
 
Ao seu lado, uma criança montava um playmobil enquanto a mãe cantava Sunshine, de John Denver.
 
Encostei-me na parede, para não ser derrubado pela multidão e fitei a moça. Ela, ao ver que já tinha um espectador, tratou de aprumar o canto: nestes espetáculos, a entrada só é paga depois do show, e a responsabilidade de agradar é imensa em se considerando que, muitas vezes, até quem acha bom não coça o bolso.
 
Ao final da música, já havia mais espectadores. O dedo da moça roçou as cordas e eu reconheci Moonlight on the Colorado.
 
Ela tinha que ter deixado alguém às margens do Rio Colorado e estava morrendo de saudades para por tanto sentimento na canção. A voz lhe saía macia e angustiada: imaginei Billie Holliday cantando Blue Moon.
 
Na hora do solo do violão ela baixou a cabeça e encolheu-se toda. Cada músculo do seu corpo enrijecido trabalhava-lhe em função dos dedos que conseguiam fazer as cordas do violão cantarem o luar sobre o Rio Colorado: dava para imaginar a Lua fazendo o make up, usando as águas do Colorado como espelho.
 
Lembrei-me do Tocantins, que em nada fica a dever ao Colorado e eu pagaria alguns dólares à moça se ela conseguisse entoar Este Rio é minha rua, do Rui Barata, mas aí também seria querer demais.
 
Uma pequena caixa, que a moça usava como receptáculo de donativos, viu alguns quartos de dólar e até umas notas de 1 dólar caírem.
 
Ela ensaiou Blowing in the wind, do Dilan. O violão reclamou o passo. Ela trabalhou as cordas e ensaiou de novo. O violão aquiesceu. A criança puxou-lhe o braço para mostrar que havia montado o playmobil. Ela piscou o olho e pediu, com a mão, que pulou das cordas, que esperasse. A criança insistiu. Ela baixou o violão e olhou. Elogiou a proeza e pediu que a criança montasse uma igreja.
 
Voltou ao violão e o Bob Dilan nunca saberá que a melhor intérprete de sua Blowing in the wind era uma moça em um canto qualquer do segundo subsolo da Penn Station.
 
O mundo e a vida são uma sucessão de conveniências e oportunidades que advêm destas conveniências. São as tais circunstâncias que lançam a sorte e o destino dos homens.
 
Saber aproveitar as circunstâncias e estar no espaço e tempo certos, no momento em que elas ocorrem, sela o destino daqueles que conseguem o tal sucesso na vida. Não o sucesso comum, que se perde nos números e na impessoalidade de outros sucessos, mas o sucesso que consegue saltar da planície da vida e alcançar a glória.
 
Mas a glória é de uma miopia quase cega. É preciso um exercício fabuloso e acessórios inimagináveis para se fazer notar por ela. Algumas vezes o exercício e os acessórios passam a ser mais importantes que a essência, pois que esta seria desprezível até nos metrôs se estivesse nua. As plumas e os paetês são também um instrumento de ilusionismo no mundo do show business.
 
Qualquer inutilidade que se consiga vestir de Broadway, tem sua experiência de glória, nem que sejam os efêmeros neons da Times Square, por uma semana.
 
Os artistas do subway não verão a luz do sol. A doce vingança deles deve ser o sentimento único de saber que os que vivem à luz do sol jamais os verão.
 
Mas eles também, a preços módicos, ou sem preço algum, tocam o coração dos apressados e os fazem diminuir o passo e até parar para ouvi-los.
 
Alguns até resolvem esperar o próximo trem. Não é isto afinal, também uma glória?

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