27/09/2009

A mãos que seguram a corda

corda
 
Ainda não consegui entender muito bem esta polêmica toda sobre a corda no Círio de Nazaré. Tem gente que tem a maldita e insólita mania de ficar procurando chifre em cabeça de cavalo quando o unicórnio, se não foi um belo sonho mitológico que embalou o coração dos gregos, já é, há muito, uma espécie extinta.
 
A corda é uma tradição singular no contexto da procissão. Está inextricavelmente ligada ao apelo dos fiéis e à cultura dos profanos. Tornou-se o meio através do qual os pagadores da promessa de puxá-la oferecem seu sacrifício à Virgem.
 
O ser humano tem a necessidade atávica da imolação como compensação da vida, que está fundamentada no axioma mitológico de que tudo tem um preço. O preço de ter alcançado algo que o fiel reputa extremamente importante para si e acha que não conseguiria sem a interferência de um poder maior, ele paga em forma de uma promessa cumprida.
 
A promessa maior que um fiel pode fazer à Virgem de Nazaré é puxar a corda na procissão, exatamente porque o cumprimento desta promessa representa o maior sacrifício. Chega a ser uma auto imolação.
 
Por que se acham alguns com o direito de interferir em um processo que surgiu do fundo do coração dos homens e se cimenta na fé que os leva a agir?
 
Não cabe a ninguém dizer ao homem como ele deve exercer a sua fé. O máximo que se pode fazer é adverti-lo das consequências que o seu ato pode desencadear e vigiar para que estas consequências, se danosas, possam atingir somente àqueles que assumiram o risco em nome do que acreditam.
 
Se o número de fiéis à corda se tornou tanto, a ponto de fazê-la impraticável da forma que existe hoje, é necessário elaborar formas de dar-lhe novamente praticabilidade, jamais, porém, pensar em extingui-la. Isto deve estar absolutamente fora de cogitação.
 
Quem nunca teve ou sentiu a necessidade de fazer o sacrifício jamais poderá sentir a maravilhosa sensação do dever cumprido e a imensa paz interior que devem sentir os donos dos pés e mãos calejadas que puxam a corda.
 
Ali eles são, por algumas horas, guerreiros e guerreiras dos seus próprios sonhos e da sua fé intimorata. Naqueles momentos, os fiéis são bravos lutadores, que com o risco da própria integridade física, não abrem mão de segurar o sisal que, com certeza, lhes representa, mesmo que de forma inconsciente, o elo de ligação entre eles e um ser maior em quem acreditam: a mãe do Cristo.
 
Fazem na corda, os fiéis, ricos ou pobres, brancos ou pretos, a sua catarse. É um momento mágico então.
 
Não consigo ver problema algum no fato de o ser humano ainda guardar consigo o sentimento ilhado de fazer sacrifícios pelos seus ideais, em uma época em que ter ideais se torna cada vez mais raro.
 
É extremamente perigoso querer matar rituais que surgiram de forma espontânea do seio da coletividade.
 
Deixem a corda em paz, portanto. O dia em que os fiéis e a fé não a acharem mais praticável, o mesmo processo que a fez surgir e tomar a forma que hoje tem, encarregar-se-á de fazer dela apenas mais uma doce lembrança.

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